A Dança da Chuva
No meio da fuligem, vamos ter que aprender como enxergar espíritos do mundo invisível e falar com eles
Uma colega que vive no Reino Unido me fez sentir a boa inveja hoje de manhã, e olha que nem sabia desse sentimento com tanta intensidade, no peito e na pele.
A causa de tanta boa inveja foi saber da chuva que cai no seu pequeno jardim em Londres. Ah, chuva, chuva, chuva que cai do céu e nem me importa se muito fria ou gelada na ilha dos Beatles! Inveja da chuva alheia deve ser assim, como achar mais verde a grama do quintal do vizinho. Aqui, entre nós, às portas da primavera tropical, o céu de fumo e fuligem joga sobre nossas cabeças a tinta preta do carvão florestal.
Luxo de exibicionistas, pois queimamos jacarandá, peroba rosa, cedro, angico, peroba do campo, amarelinho, pau-ferro, canela de velho e ipê. Tocamos fogo na mata para ver a bicharada, onças-pintadas e amarelas, viados do campo, preguiças, tamanduás-bandeiras e tamanduás-mirins, cobras de todos os tipos, tatus, araras-vermelhas, amarelas e azuis, jacarés de barriga amarela, saguis, rãs e lagartos fugirem entre labaredas no planalto e nas campinas, no cerrado e na caatinga, biomas que lá no frio da Inglaterra chegam também a dar inveja.
Temos tanta floresta, mata atlântica, mata seca, mata de beira de rio, mata ciliar. Temos tanta floresta para queimar por toda a eternidade. Será?
Meus vizinhos maxakalis, aqui do Vale do Mucuri, são meus grandes professores na invocação da fauna e da flora. São capazes de listar e convocar todo um gradiente de vida de um lugar onde o pasto e a degradação já expulsaram quase todos os insetos, répteis, pássaros, animais peçonhentos, plantas e fungos que havia ali.
Esse povo, que foi expropriado de tanto, ainda consegue recriar, em meio ao deserto em que foi convertido o seu território, com seus cantos, suas rezas e suas histórias, um mundo para ser habitado.
Enquanto isso, bravos brigadistas combatem as chamas aqui e nos quintais vizinhos, afinal, floresta não tem fronteiras. Nem vento, nem fogo, nem água reconhecem essa invenção do bicho-humano. Brigadistas brasileiros pularam para o lado boliviano em um árduo corpo a corpo na contenção do fogo.
Uma linha de chamas segue aumentando de ambos os lados e ameaça chegar às terras dos indígenas guatós, a uma comunidade ribeirinha e à Serra do Amolar, área protegida no Pantanal sul-mato-grossense formada por 80 quilômetros de extensão de morros e que combina áreas com características de mata atlântica, do Pantanal e da amazônia, fazendo dela um verdadeiro santuário da biodiversidade.
A Serra do Amolar foi, inclusive, declarada patrimônio natural da humanidade. Da humanidade? Que ironia. Pois entre os ameaçados pelo fogo estão cerca de 3.500 espécies de plantas, 325 espécies de peixes, 53 espécies de anfíbios, 98 espécies de répteis, 656 espécies de aves e 159 tipos de mamíferos.
No meio da fuligem, com sonhos de chuva, penso que vamos ter que aprender com os maxakalis como enxergar os espíritos do mundo invisível e falar com eles.
Ailton Krenak, Folha de São Paulo, Setembro de 2024.