Um comentário sobre o conhecimento e o aprendizado
Olá a todos os leitores deste blog;
Sou professor de Metodologia Científica na UFRJ para alunos de Pós-Graduação na área da Saúde, e as turmas são compostas predominantemente por médicos. Um dos recursos pedagógicos que utilizo são os diários de campo, relatos individuais das vivências dos alunos durante o curso. Durante o curso trabalho com sucesso, ao par dos conteúdos técnicos específicos, as maneiras de pensar científicamente e as consequências disto em usa vidas pessoais e profissionais. Os diários de campo são uma das formas de expressão e trabalho destes aspectos.
Abaixo reproduzo uma mensagem para os meus alunos, que acho pode ter utilidade para todos aqueles que estão aprendendo e ou ensinando.
A mensagem
Li, em um diário de campo a seguinte afirmação:
Quando entrei para o mundo da pesquisa fiquei fascinada e ao mesmo tempo bateu uma enorme sensação como se eu não soubesse mais nada que aprendi. O início é doloroso pela metodologia e terminologias diversificadas, era um mundo novo que se apresentava, extremamente necessário e vital para quem trabalha na área da saúde. Quando começamos a aprender leitura de artigos científicos , digo assim porque tenho curiosidade se meus colegas têm ou tiveram a mesma sensação, nada que lemos está bom ou pode ser usado. E este sentimento interferiu fortemente no meu dia a dia.
Como esta sensação, é muito freqüente entre os alunos (explícita ou não), resolvi fazer este comentário disponibilizando-o para todos.
Determinados aprendizados são incrementais, isto é; você aprende A depois B, depois C e assim por diante e cada novo conhecimento incrementa o já sabido. Neste caso o conhecimento A é, em certa medida, pré-requisito de B e mais que isto, em B o que acontece é uma ampliação, um refinamento, um aprofundamento de A. Aqui A está presente em B sem alterações significativas. De alguma forma isto é o tradicional, é talvez a maneira como vocês aprendem medicina (pelo menos na graduação).
Mas esta não é a única forma, há outros casos em que B modifica A, às vezes o rejeita como falso, outras vezes impõe certos limites, pode ainda atribuir-lhe novo significado. Neste caso o aprendizado se dá por perturbação. É isto, o que em geral acontece em ciência. Em especial, o estudante de método foca sua atenção nas maneiras de construir o conhecimento, assim como nos seus limites. Aqui o conhecimento é entendido como resultado de um processo de produção; não como revelado pelo douto, maneira habitual da forma incremental.
E a forma de ensino tem um papel muito importante no aprendizado do aluno. Em artigo que publiquei, discorri sobre isto (Peixoto, Silva e Rocha, 2010):
Os diferentes tipos de métodos de ensino têm forte influência na maneira pela qual este equilíbrio é modulado. Farnham-Dyggory (1994, p. 463-77) apresenta três paradigmas instrucionais; o comportamental, o noviciado e o evolutivo, os quais definem a maneira pela qual um noviço pode ser diferenciado do especialista. No primeiro a diferença é predominantemente quantitativa. O especialista sabe mais, faz mais rápido, apresenta-se melhor que o noviço. O aprendizado se faz de maneira incremental, cabendo ao ensino o fornecimento regular e continuado de novos conhecimentos. No noviciado o que existe é a aculturação; o noviço progressivamente assimila a cultura do mestre. Ao final do processo, mestre e aprendiz fazem parte do mesmo mundo afetivo e cognitivo. Já no evolutivo, a diferença se faz pelas teorias explicativas da realidade que um e outro possuem. A diferença é qualitativa, possuindo o especialista modelos mais complexos, abstratos e sofisticados que o noviço. Aqui o aprendizado se faz por perturbação, onde os modelos do noviço são continuamente questionados e desconstruídos. Foi este o paradigma instrucional utilizado para orientar a disciplina aqui descrita.
Como neste caso, são as próprias bases do conhecimento que estão sob ataque, isto pode criar no aluno uma sensação de insegurança. Em especial isto pode ser ainda mais desconfortável nas profissões da saúde, na medida em que, em sua atividade diária precisam confiar nos conhecimentos adquiridos apenas após longo e extenuante esforço. Ainda mais, é dele que dependem no seu trato cotidiano com a vida humana. Neste sentido, clínicos precisam (pelo menos em parte) tomar o seu conhecimento como estável e certo, e não como meramente uma hipótese possivelmente verdadeira. Daí a força do “magister dixit” – o mestre disse.
Mas ao caminhar do clínico para o pesquisador, outro mundo se descarta. O da ciência onde, por definição o conhecimento é mutável, servindo apenas como base para novos avanços. Equilibrar-se entre estes dois pólos, não é tarefa fácil. De certa maneira, quanto mais sabemos, mais sabemos que nada sabemos. Se lhes serve de consolo e motivação cito Pascal pelo texto de Lefrançois:
A Velha Senhora apontou para o gravador, isso significava que eu tinha de desligá-lo, porque ela ia parar um pouco; achei que ela queria ir ao banheiro. Não. Disse que acreditava que alguns estudantes poderiam estar interessados em outro pensamento de Blaise Pascal, aquele por meio do qual esse estudioso afirma que a ciência está entre dois extremos: um, a pura e natural ignorância, estado no qual todos os homens nascem; o outro, o estágio alcançado por almas elevadas que aprenderam tudo o que é possível aos humanos e que, finalmente, chegaram à conclusão de que não sabem nada, que estão, mais uma vez, no estado de ignorância. Entretanto, esse é um tipo de ignorância bem diferente daquela do primeiro estágio, uma ignorância que vê e julga as coisas com mais clareza. Os desafortunados, diz Pascal, são os que só alcançaram o meio do caminho entre os dois extremos – aqueles que aprenderam muito do que a ciência sabe, mas não conseguiram compreender que não sabem nada. Essas almas são as que mais atrapalham o mundo e que vêem as coisas de modo mais obscuro (Pascal, 1820, p. 121). Eu quis protestar, explicar que não somos nem ignorantes nem meio ignorantes, mas a Velha Senhora começou a ler o manuscrito mais uma vez, e eu corri para ligar o gravador; mesmo assim, perdi algumas palavras do que ela disse.
Pois é…
Continuem no caminho da DOUTA IGNORÂNCIA!
Prof. Mauricio Peixoto
Referências:
Farnham-Diggory, S. Paradigms of knowledge and instruction. Review of Educational Research, v.64, n.3, p.463-77, jul./set. 1994.
Lefrançois, G.R.: Teorias da Aprendizagem: O que as Velha Senhora disse, pg 397, São Paulo, Cengage Learning, 2008.
Peixoto, M.; Silva, M.; Rocha, C.. APRENDIZAGEM E METACOGNIÇÃO NO ENSINO DE METODOLOGIA CIENTÍFICA. Ensaio Pesquisa em Educação em Ciências, América do Norte, 1226 03 2010. Disponível na web em http://www.portal.fae.ufmg.br/seer/index.php/ensaio/article/view/257/259 . Acesso em 30/06/2010.
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Prof. Mauricio
Gostarei de saber sobre as possíveis relações entre o pensamento e o sentimento, ou seja: Razão e emoção: Em que se ajudam e/ou atrapalham.
Se puder enviar-me a bibliografia a respeito, ficarei muito agradecido.
Um abraço e parabens pela sua atuação
Antonio Fernando
A tempo: Estou enviando-lhe este comentário pela seguna vez porque acho que o primeiro, enviado há alguns minutos, não pôde ser respondido pelo chat da Globo por tê-lo enviado em cima da hora do encerramento.
Olá Antônio;
Razão e emoção são inseparáveis – uma influenciando na outra e vice-versa. Pensar suas emoções ajuda a gerenciá-las. Por outro lado, o raciocínio se te permite criar múltilplas alternativas de ação, nã te permite escolher a melhor. Aí o sentimento te ajuda a escolher. O livro do Goleman – “Inteligência Emocional” pode ser um primeiro passo para você aprender um pouco mais sobre o tema.
Abs,
Prof. Mauricio Peixoto