Os sonhos não envelhecem
A vida não aceita rascunhos. Muitas evoluções biotecnológicas vêm acontecendo rapidamente, possibilitando que mais pessoas vivam mais. Mas são as circunstâncias que a vida nos proporciona — ou não —, as escolhas que fazemos, que determinam como envelheceremos. Somos o reflexo do passado de muitos; do presente de outros tantos; e anunciamos a perspectiva de uma velhice futura, que será vivida de modo individual e coletivo.
Sobre a nossa bagagem genética atuam o ambiente e a cultura em que vivemos, os comportamentos assumidos e a passagem inevitável do tempo. Isso torna o envelhecimento um fenômeno individual e irrepetível.
Dessa forma, se é fato que nunca tantas pessoas alcançaram a velhice, também é verdade que vivemos um tempo paradoxal em que conflitam o desejo de continuar vivo e o medo de envelhecer. Se o tempo é nossa maior e finita riqueza, envelhecer cobra responsabilidade no uso do tempo conosco e com os outros.
Para apoiar as decisões sobre o uso do tempo, pesquisas têm demonstrado que o que promove felicidade e bem-estar na velhice são as relações que construímos ao longo da vida. É importante investir tempo no cultivo de relações construtivas: aquelas que apoiam não somente com elogios, mas com uma escuta ativa e crítica, que conseguem ler entrelinhas e estão disponíveis para acolher nossas derrotas e vibrar com nossas vitórias. Amanhã pode ser tarde demais para dizer, fazer, viver com pessoas que nos importam. Afinal, a vida é breve e imprevisível.
Além disso, o uso adequado do tempo pressupõe saber distribuí-lo entre os cuidados. O cuidado com o corpo, o cuidado com a mente, o cuidado com o espírito, o cuidado com as pessoas, o cuidado com o mundo…
Autocuidado é parte de uma perspectiva positiva de envelhecimento, pois significa assumir responsabilidade sobre o que fazemos, o que comemos, quanto tempo passamos sentados por dia, quanto tempo dedicamos a praticar atividades físicas, quanto tempo dedicamos ao trabalho, o que nos motiva.
E, como não há rascunho, é preciso fazer a vida valer a pena.
A vida sempre vale a pena quando investimos nosso tempo em tornar o mundo melhor. Não significa pretender ser um gênio ou um Prêmio Nobel da Paz. Basta olhar ao redor. Há muito a ser feito. Envolver-se com uma causa, cuidar do jardim da nossa casa ou das árvores da rua. Visitar pessoas. Observar vizinhos e amigos, estando atentos àqueles que estão menos presentes. Ser presente. Adaptar-se a situações novas. Guardar recursos e investir pensando no futuro. Precaver-se de fraudes e abusos. Aprender diferentes linguagens e idiomas. Valorizar desejos, compartilhar habilidades, criar oportunidades para conviver e aprender com outras gerações, ciente de que sempre é possível aprender. Desfazer-se de ressentimentos. Ousar ser você mesmo, independentemente do olhar dos outros. Isso inclui sonhar. Sonhar sempre, os sonhos não envelhecem…
Importante saber, que a longevidade de amanhã, eu construo hoje. Essa longevidade que já me habita, ainda que eu não a perceba, trará marcas do vivido e do não vivido, de memórias e esquecimentos, de encontros e despedidas, de saudades do que nunca viverei porque algumas pessoas já não estão mais aqui.
Como disseram Fernando Brant e Milton Nascimento: “São só dois lados da mesma viagem/O trem que chega é o mesmo trem da partida/A hora do encontro é também despedida/A plataforma dessa estação/É a vida desse meu lugar/É a vida desse meu lugar/É a vida…”
Karla Giacomin, médica geriatra e consultora da Organização Mundial da Saúde.