A sabedoria do corpo
…Problema é algo que me corta o passo e me desafia em minha condição de sujeito cognoscente; problema é algo passível de equacionamento e, mesmo, eventual solução. Em suma, eu posso fazer de um problema uma presa do meu conhecimento. Já o mistério não me corta o passo; ele me envolve porque sou vivente, carregando em mim o mistério da centelha vital que escapa aos mais argutos médicos e fisiologistas. Do mistério eu sou presa. Se posso equacionar e resolver o problema, quanto ao mistério me é dado, no máximo, ter dele uma certa intuição contemplativa. Contemplando-o eu o intuo como uma certeza tremenda; mas, ao mesmo tempo, como uma absoluta impossibilidade cognitiva (pois, ao contrário, já não seria mistério)… A sabedoria das articulações ósseas e das disposições musculares faz-nos encontrar uma inteligência que caracteriza cada pequena ou grande parte do corpo que estudemos… Nossos corpos são, antes de tudo, o nosso primeiro e mais fundamental mistério. A cada dia somos convocados às alegrias da corporeidade e, ao mesmo tempo, à sua aterradora efemeridade; o mais competente fisiologista saberá explicar-nos aspectos sutis do funcionamento de órgãos, aparelhos e sistemas do corpo; mas não há cientista, seguro do que faz, que ouse uma explicação sobre a própria centelha vital: o que nos mantém vivos? O que alimenta esse impulso primeiro? Somos e não temos um corpo… E o corpo apresenta claramente uma consciência e uma sabedoria que não precisam de raciocínios… Toda atitude do ser humano é atitude corporal…
L. P. de Moraes. Calatonia: a sensibilidade, os pés e a imagem do próprio corpo em psicoterapia. Dissertação de Mestrado, 1979. Universidade de São Paulo, São Paulo.