Ao lermos não somos o olho; somos o ouvido
– Explique como é que se faz?
– Faz o quê?
– Como é que uma pessoa consegue ler? Eu queria tanto saber…
– Isso demora a aprender, Rosi.
– Eu vi como você faz. Você passa o dedo pelas linhas e vai mexendo os lábios. Já fiz o mesmo e não escuto nada. Explique-me qual é o segredo. Eu aprendo rápido.
– Para ler esses papéis, Rosi, você precisa ficar parada. Completamente parada, os olhos, o corpo, a alma. Fica assim um tempo, como um caçador na emboscada.
Se permanecesse imóvel por um tempo, aconteceria o inverso daquilo que ela esperava: as letras é que começariam a olhar para ela. E iriam segredar-lhe histórias. Tudo aquilo parecem desenhos, mas dentro das letras estão vozes. Cada página é uma caixa infinita de vozes. Ao lermos não somos o olho; somos o ouvido.
Mia Couto, Mulheres de Cinzas – vol I