A gente se acostuma. Mas não devia
A gente se acostuma a morar em apartamentos de fundos e a não ter outra vista que as janelas ao redor. E porque não tem vista. logo se acostuma a não olhar para fora. E porque não olha para fora, logo se acostuma a não abrir de todo as cortinas. E porque não abre as cortinas, logo se acostuma a acender mais cedo a luz. E à medida que se acostuma, esquece o sol esquece o ar, esquece a amplidão.
A gente se acostuma a acordar de manhã sobressaltado, porque está na hora. A tomar café correndo porque está atrasado. A ler o jomal no ônibus, porque não pode perder o tempo de viagem. A comer sanduíche porque já é noite. A cochilar no ônlbus porque está cansado. A deitar cedo e dormir pesado sem ter vivido o dia.
A gente se acostuma a abrir o jornal e ler sobre a guerra. E aceitando a guerra, aceita os mortos e que haja número para os mortos. E aceitando os números, aceita não acreditar nas negociações de paz.
A gente se acostuma a coisas demais para não sofrer. Em doses pequenas, tentando não perceber, vai afastando uma dor aqui, um ressentimento ali, uma revolta acolá. Se o cinema está cheio, a gente senta na primeira fila e torce um pouco o pescoço. Se a praia está contaminada, a gente só molha os pés e sua no resto do corpo. Se o trabalho está duro, a gente se consola pensando no fim de semana. E se no fim de semana não há multo o que fazer, a gente vai dormir cedo e ainda fica satisfeito porque tem sono atrasado.
A gente se acostuma para não se ralar na aspereza, para preservar a pele. Se acostuma para evitar feridas, sangramentos, para esquivarse da faca e da baioneta, para poupar o peito. A gente se acostuma para poupar a vida. Que aos poucos se gasta, e que de tanto acostumar, se perde de si mesma.
(Marina Colassanti)