O outono chegou mais uma vez. E assim sempre será. De cara nova, transformado e ainda com o calor do verão. Porém, já podemos perceber e sentir algum frescor no ventinho que chega. É uma brisa que sopra e que traz esperança de dias com ar mais agradável.
O sol já se posiciona de outra forma, colocando-se no seu novo lugar com uma presença mais recolhida. Ele nos dá bom dia um pouquinho mais tarde e se despede à noite, gentilmente, com algum tempinho adiantado. Nos libera mais cedo para que possamos nos aquietar e aceitar o seu convite ao recolhimento para uma noite de deixar sossegar.
Outono de novos plantios. Outono de semeaduras. Outono de cuidar da terra, alimentá-la e nutri-la com amorosidade e paciência, oferecendo o nosso olhar atento para sentirmos com o coração o que ela nos pede.
Outono de preparação para recomeços e renovações. A terra está de braços abertos para receber nossa atenção, nossa entrega e nosso bem-querer.
Que o Outono aconteça dentro de cada um de nós! Que deixemos transbordar essa essência outonal para uma vida de fazer mover o que reforma, transforma e que possibilita o caminho para um novo renascer.
Bem-vindo Outono!
Maria Teresa Guimarães.
Há mulheres que falam silêncio. Enchem a vida como um batel de sonhos. Se lhes perguntam se querem falar do que arrastam, respondem que é das gaivotas que preferem falar.
Trocam a terra firme pelo baloiçar das águas. Não têm âncoras nos barcos, pois é com as mãos e a alma que querem agarrar as amarras do cais.
Largam abrigos sem consultar as bússolas e os astrolábios dos navegadores.
Não mareiam, deslizam.
Não cismam no que não têm, antes observam as mãos abertas e encontram-nas vestidas de sonhos.
Aconselham-se com as marés e escutam os peixes que vêm à tona.
Vestem-se para uma festa todas as noites, mesmo que as noites não se abram no vento.
Adormecem em almofadas de penas.
Os seus corações não precisam de leme.
Lília Tavares, Bailarinas de Corda.
Em uma tarde ensolarada de céu azul e vento na medida certa, um passarinho foi chegando e nos recepcionando. Nos cumprimentamos e, no seu saltitar, foi nos conduzindo por caminhos inusitados. Afinal de contas, um passarinho que faz um longo trajeto entre mesas, pessoas e sons de vozes sem se abalar, é, no mínimo, diferente!
Seguia saltitando e nos vigiando, atento à nossa condição de convidados. Ele, como nosso cicerone, não nos perdia de vista um segundo sequer. Ok! Já o havíamos aceitado como nosso guia. E, ora confiantes, ora meio desconfiados, decidimos por dar um crédito e seguir na caminhada.
Finalmente chegamos ao nosso destino. Ou melhor, ao destino escolhido pelo nosso anfitrião. E, pasmem, nos deixou sob uma linda árvore que fornecia uma vasta sombra e cantos deliciosos de outros pássaros que, ali, também nos aguardavam. O nosso guia nos olhou e entendemos que aquele era o local onde deveríamos nos aninhar e relaxar.
Nosso gentil anfitrião se despediu, e, alçando seu belo vôo, nos olhou mais uma vez, desejando uma gostosa tarde de paz.
Gratos!
Maria Teresa Guimarães.
Vive-se só uma vez, mas se certo, é suficiente!
Adam Marshall.
O apego à vida é diretamente proporcional à não tê-la vivido bem e não ao contrário! Quando se experimenta e se vive a vida em sua integralidade não há mais nada a fazer por aqui. Esse é o esforço de todos nós: cumprir-nos. Mas não fantasie que alguém saiba viver assim tão perfeitamente! Todos temos apegos porque aqui ou ali não aceitamos todos os convites para dançar! E a fantasia é de que fique uma pendência… porém não fica não! Esse sentimento não é para punir, mas um instinto constante para te jogar de novo na festa!!!
Nilton Bonder.
Sei dos filhos
pelo modo como ocupam a casa:
uns buscam os recantos,
outros existem à janela.
A uns satisfaz uma sombra,
a outros nem o mundo basta.
Uns batem com a porta,
outros hesitam como se não houvesse saída.
Raras vezes sou pai.
Sou sempre todos os meus filhos,
sou a mão indecisa no fecho,
sou a noite passada entre relógio e escuro.
Em mim ecoa a voz
que, à entrada, se anuncia: cheguei!
E eu sorrio, de resposta: chegou?
Mas se nunca ninguém partiu…
E tanto em mim
demoram as esperas
que me fui trocando por soalho
e me converti em sonolenta janela.
Agora, eu mesmo sou a casa,
casa infatigável casa
a que meus filhos
eternamente regressam.
Mia Couto.
O meu Carnaval já passou por várias fases:
O Carnaval dos clubes, das ruas, das praias. O Carnaval do recolhimento, das viagens, da casa e em casa. O bom dessas fases é que, em cada uma delas, o que prevaleceu foram a alegria e a diversão. Momentos de descanso, de filmezinho à tarde, folia à noite e, de quebra, manhãs preguiçosas para repor as energias. Em todos esses momentos, o bom humor era a alma da folia.
Hoje, e já de muito, a folia está aqui, presente, do meu jeito de ser agora: mais sossego, menos euforia e deliciosas brisas de morosidade. Sem pressa, sem hora, sem urgência, tendo como uma das companhias os livros que estão aguardando serem saboreados.
Carnaval, pra que te quero?
Te quero trazendo lembranças de todos esses momentos vividos de formas diferentes e sempre respeitando aquilo que, em cada época, eu entendia e sentia que assim era o meu jeito de deixar viver o meu lado foliã. Ora intensa, ora mais aquietada e, agora, mais asserenada.
E, para você, carnavalesco do seu jeito de ser, eu desejo “O Seu Carnaval”!
Boa folia!
Maria Teresa Guimarães.
Mergulhar a palavra suja em água sanitária.
Depois de dois dias de molho, quarar ao sol do meio dia.
Algumas palavras quando alvejadas ao sol
adquirem consistência de certeza,
por exemplo a palavra vida.
Existem outras, e a palavra amor é uma delas,
que são muito encardidas e desgastadas pelo uso,
o que recomenda esfregar e bater insistentemente na pedra,
depois enxaguar em água corrente.
São poucas as que ainda permanecem sujas depois de submetidas a esses cuidados,
mas existem aquelas.
Dizem que limão e sal tiram as manchas mais difíceis, mas nada.
Todas as tentativas de lavar a piedade foram sempre em vão.
Mas nunca vi palavra tão suja
como a palavra perda.
Perda e morte na medida em que são alvejadas,
soltam um líquido corrosivo, que atende pelo nome de amargura,
capaz de esvaziar o vigor da língua.
Nesse caso o aconselhado é mantê-las sempre de molho
em um amaciante de boa qualidade.
Agora se o que você quer
é somente aliviar as palavras do uso diário,
pode usar simplesmente sabão em pó e máquina de lavar.
O perigo aqui é misturar palavras que mancham
no contato umas com as outras.
A culpa, por exemplo, mancha tudo que encontra
e deve ser sempre clareada sozinha.
Uma mistura pouco aconselhada é amizade e desejo,
já que desejo sendo uma palavra intensa, quase agressiva,
pode, o que não é inevitável,
esgarçar a força delicada da palavra amizade.
Já a palavra força cai bem em qualquer mistura.
Outro cuidado importante é não lavar demais as palavras
sob o risco de perderem o sentido.
A sujeirinha cotidiana, quando não é excessiva,
produz uma oleosidade que conserva a cor
e a intensidade dos sons.
Muito valioso na arte de lavar palavras
é saber reconhecer uma palavra limpa.
Para isso conviva com a palavra durante alguns dias.
Deixe que se misture em seus gestos,
que passeie pelas expressões dos seus sentidos.
À noite, permita que se deite,
não a seu lado, mas sobre seu corpo.
Enquanto você dorme
a palavra plantada em sua carne
prolifera em toda sua possibilidade.
Se puder suportar a convivência
até não mais perceber a presença dela,
então você tem uma palavra limpa.
Uma palavra limpa é uma palavra possível.
Viviane Mosé, Receita para lavar palavra suja.
…Problema é algo que me corta o passo e me desafia em minha condição de sujeito cognoscente; problema é algo passível de equacionamento e, mesmo, eventual solução. Em suma, eu posso fazer de um problema uma presa do meu conhecimento. Já o mistério não me corta o passo; ele me envolve porque sou vivente, carregando em mim o mistério da centelha vital que escapa aos mais argutos médicos e fisiologistas. Do mistério eu sou presa. Se posso equacionar e resolver o problema, quanto ao mistério me é dado, no máximo, ter dele uma certa intuição contemplativa. Contemplando-o eu o intuo como uma certeza tremenda; mas, ao mesmo tempo, como uma absoluta impossibilidade cognitiva (pois, ao contrário, já não seria mistério)… A sabedoria das articulações ósseas e das disposições musculares faz-nos encontrar uma inteligência que caracteriza cada pequena ou grande parte do corpo que estudemos… Nossos corpos são, antes de tudo, o nosso primeiro e mais fundamental mistério. A cada dia somos convocados às alegrias da corporeidade e, ao mesmo tempo, à sua aterradora efemeridade; o mais competente fisiologista saberá explicar-nos aspectos sutis do funcionamento de órgãos, aparelhos e sistemas do corpo; mas não há cientista, seguro do que faz, que ouse uma explicação sobre a própria centelha vital: o que nos mantém vivos? O que alimenta esse impulso primeiro? Somos e não temos um corpo… E o corpo apresenta claramente uma consciência e uma sabedoria que não precisam de raciocínios… Toda atitude do ser humano é atitude corporal…
L. P. de Moraes. Calatonia: a sensibilidade, os pés e a imagem do próprio corpo em psicoterapia. Dissertação de Mestrado, 1979. Universidade de São Paulo, São Paulo.
Lar é onde se acende o lume e se partilha mesa e onde se dorme à noite o sono da infância.
Lar é onde se encontra a luz acesa quando se chega tarde.
Lar é onde os pequenos ruídos nos confortam: um estalar de madeiras, um ranger de degraus, um sussurrar de cortinas.
Lar é onde não se discute a posição dos quadros, como se eles ali estivessem desde o princípio dos tempos.
Lar é onde a ponta desfiada do tapete, a mancha de humidade do tecto, o pequeno defeito no caixilho, são imutáveis como uma assinatura conhecida.
Lar é onde os objetos têm vida própria e as paredes nos contam histórias.
Lar é onde cheira a bolos, a canela, a caramelo.
Lar é onde nos amam.
Rosa Lobato Faria.
Aprendi que a vida, apesar de bruta, é meio mágica. Dá sempre pra tirar um coelho da cartola. E lá vou eu, nas minhas tentativas, às vezes meio cegas, às vezes meio burras, tentar acertar os passos. Sem me preocupar se a próxima etapa será o tombo ou o voo. Eu sei que vou. Insisto na caminhada. O que não dá é pra ficar parado. Se amanhã o que eu sonhei não for bem aquilo, eu tiro um arco-íris da cartola. E refaço. Colo. Pinto e bordo. Porque a força de dentro é maior. Maior que todo mal que existe no mundo. Maior que todos os ventos contrários. É maior porque é do bem. E nisso, sim, acredito até o fim…
Caio Fernando Abreu.