Cotas de confusão, ou de como escravizar dando-lhes liberdade.
Usei intencionalmente o título da matéria do Globo, pois é exatamente sobre isto o que eu quero comentar. “Redigido às pressas para ser aprovado anteontem no dia da Consciência Negra” (citação do jornal O Globo), o projeto cria reserva de 50% das vagas para alunos de escolas públicas, pretos e pardos, mulatos e índios, sendo metade para a cota racial e a outra metade para a escola pública. Mas há oposição de vários setores ligados à educação. Abaixo um resumo dos argumentos listados:
- O texto permite confusão operacional. “Alunos de escolas públicas, pretos e pardos, mulatos e índios” são categorias não excludentes. Por exemplo, em qual cota entra um aluno de escola pública que é preto ou pardo?
- Como a cota racial depende por exemplo da prevalência de pretos e pardos na população de um dado estado, ou estes tomarão indevidamente espaço da reserva para alunos de escolas públicas (no caso da taxa ser muito elevada. P/ex: Bahia = 73,16%), ou caso contrario (Sta. Catarina = 9,68%), os alunos das escolas públicas ficam “esprimidos” na sua metade enquanto a cota racial se “espalha” pela sua metade.
- É inconstitucional acabar com o vestibular para alunos de escolas públicas, pretos e pardos,mulatos e índios, determinando que estes sejam aprovados em função das notas do ensino médio pois fere a autonomia pedagógica das universidades, impendindo-as de estabelecer seus critérios de acesso.
- É também inviável pois são milhares de escolas públicas no país, com os mais diversos critérios e níveis de exigência. Por isto um aluno nota dez em um escola A não é necessáriamente melhor que outro nota 5 da escola B.
- Contribui para acirrar a divisão entre negros, mulatos e índios e brancos
- Segundo a antropóloga Yvone Maggie da UFRJ “o sistema de cotas é equivocado pois mira no alvo errado”, pois o que o país precisa é investir no ensino básico para produzir eqüidade.
Bem, estes dois últimos tópicos é o que pretendo discutir. E o farei por intermédio das lições que a história nos dá; isto porque “a história só se repete como farsa”. Afirmo que medidas deste tipo têm e terão efeito oposto ao pretendido. Para muitos – não por acaso, o projeto é aprovado no “Dia da Consciência Negra” – esta aprovação é festejada como mais um passo na luta pela liberdade do negro. Afirmo que, ao contrário, é mais uma das muitas medidas protelatórias da escravidão(*), embora com aparência libertária e promotora de justiça social.
Para entender isto é necessário voltar ao Brasil do passado; principalmente entre os períodos finais da Monarquia e os inciais da República. No século XIX, o Brasil era basicamente agrícola e escravocrata. Dele dizia-se que “o Brasil era o café e sem o escravo não haveria cafeicultura” (Aquino, et al) . Mas principlamente a partir da sua segunda metade, por variadas razões (nacionais e estrangeiras) o capitalismo avança rapidamente levando, entre outras à Proclamação da República. Isto foi o resultado do embate de muitas forças, que mesmo depois da proclamação mantiveram-se atuantes de diferentes maneiras. É neste contexto que falamos das “muitas medidas protelatórias da escravidão” citadas acima.
Em uma das vertentes , o combate à escravidão se fez apresentar em algumas leis. E apenas para citar as mais conhecidas, primeiro houve a proibição do tráfico de escravos, depois a lei do “ventre livre” passando pela do sexagenário e chegando finalmente à “Lei Áurea” . Na superfície, um processo progressivo, e dirão alguns, o possível.
No mundo real a história foi outra. Já dito, falamos de um processo de conflito entre os interessados na abolição e os seus opositores. A cada medida abolicionista, uma contra-medida.
Proibe-se o tráfico de escravos. Mas para isto há o contrabando e o suborno. A Inglaterra, interessada em combatê-lo faz vista grossa (inicialmente) pois o Brasil dela quase tudo importa, mantendo altos os lucros.
Filhos de escravas nascem livres. Sim, é verdade, mas até os oito anos ficam em poder de suas mães e ambos sob o domínio dos senhores. A partir desta idade, o dono pode escolher entre receber uma indenização do estado ou utilizar-se dos serviços do menor até os 21 anos. Pergunta-se: a) O que acontece a uma criança de oito anos que é recebida pelo Estado em troca da indenização ou crescendo até os 21 como escrava? b) Para onde vai e o que faz o agora ex-escravo ao completar os 21 anos? Qual a sua competência em sobreviver fora daquele ambiente?
Sexagenários são libertos. Sim, mas os que estiverem entre 60 e 65 anos prestam serviços por mais três anos. E acima disto o que fará para viver este velho ex-escravo, alquebrado por décadas de escravidão? Lembrar que agora ele sai da fazenda, pois é livre e o senhor não tem mais obrigação de mantê-lo. E assim vai… para onde?
A Lei Áurea acaba com a escravidão no Brasil! Acaba? Na época havia aproximadamente 720 mil escravos no país. De repente, surge uma grande massa de negros analfabetos e competentes apenas para fazer o que já faziam. Além das fazendas, as oportunidades estavam só nas cidades e na progressiva industrialização de base capitalista.
Pois é. Sobrava a tentativa de fixar-se em algum terreno baldio e plantar para comer. Mas como disse Darcy Ribeiro “Não podiam estar em lugar algum, porque cada vez que acampavam, os fazendeiros vizinhos se organizavam e convocavam forças policiais para expulsá-los, uma vez que toda a terra estava possuída e, saindo de uma fazenda, se caía fatalmente em outra” .
Em resumo, sempre medidas que favoreciam, por conta de múltiplos caminhos e relações, a não integração do negro na sociedade. E agora explicitando mais o nosso tema – mantendo-o pobre e inculto.
Bem, com o sistema de cotas agora facilta-se o acesso dos alunos de escolas públicas, pretos e pardos, mulatos e índios. Isto é dos pobres e incultos. Com isto se pretende reparar uma injustiça histórica que fez com que pretos e pardos, mulatos e índios viessem a se tornar pobres e ainda por conta do baixo investimento em educação básico também incultos.
O raciocínio é simples: SE por causa disto tudo eles se tornaram “pobres e incultos”, ENTÃO facilitar o acesso à faculdade vai torná-los “cultos” e por conseqüência “ricos” ou no mínimo “menos pobres”.
O raciocínio é simples mas falacioso. Em educação não se pode queimar etapas. O aprendizado se faz por um processo em que determinadas fases devem, necessariamente preceder outras. Antes de andar você engatinha. Antes de escrever um poema ou dissertação você precisa aprender a escrever. Você não aprende álgebra se não souber antes aritmética. Não dá para entender a geografia do mundo, se antes você não compreeender o “seu” mundo, local e restrito. Finalmente, já dito aqui, você não consegue entender o que está acontecendo hoje, se não souber de ontem; de como o seu passado se organizou para se constituir no seu presente.
Ora, o projeto admite explicitamente, que “alunos de escolas públicas, pretos e pardos, mulatos e índios” são menos capazes que outros estratos da sociedade. Por isto precisam de um “empurrão”. Neste sentido então é inevitável que os estratos “empurrados” entrem na faculdade mais incultos que os “não-empurrados”.
Se, como disse, em educação não se queima etapas, os estudantes cotistas enfrentarão muitas dificuldades adicionais em relação aos não cotistas. Isto porque as disciplinas universitárias exigirão explícita ou implicitamente toda uma série de conhecimentos prévios dominados em menor extensão pelos cotistas. Só vejo três caminhos possíveis:
- Evasão: Alunos com seguidas reprovações, ou abandonam a faculdade ou são jubilados (eliminação do processo por excesso de reprovações ou duração excessiva do curso)
- Cursos extras: A faculdade, visando suprir tais falhas cria disciplinas de nivelamento, para ensinar ao cotista aquilo que ele precisava ter aprendido antes e que importa no atual curso superior.
- Queda da qualidade: Com alunos menos preparados o trabalho fica mais difícil e os resultados menos expressivos.
Na verdade são três caminhos não-excludentes. O mais provável é que os três cursem juntos, em variadas proporções conforme a instituição, seu corpo docente e discente. Em minha opinião, nenhuma das alternativas é aceitável ou desejável.
A evasão, por óbvia que seja, traz também um problema adicional: a frustração de uma grande massa de alunos primeiro “empurados” para dentro e depois “empurrados para fora”. Saem piores do que entraram. Perdem estes e perde o país.
Criar disciplinas de nivelamento é sempre um risco de fracasso, já que dependendo do tipo de aluno podem não ser suficientes. Mais que isto, atribui ao nível superior uma tarefa que é de outrem. Professores universitários não têm (a não ser por uma questão individual) as competências para esta tarefa. Foram selecionados segundo outros critérios. Suas habilidades são mais ligadas ao aprofundamento, descoberta e especialização e à motivação, transmissão e abrangência; estas mais necessárias ao professor de segundo grau. Por isto o risco do fracasso aumenta. Ainda mais, ao deslocar o professor de suas tarefas habituais, restringe sua dedicação ao que ele precipuamente deseja e foi selecionado para tal. Diriam alguns – Contratem-se outros professores! Mas se este for o caso, por que não fazê-lo para a escola pública estadual ou municipal? Há falta deles e os benefícios seriam muito maiores.
Por tudo isto não é difícil imaginar que haja queda da qualidade do ensino e, por conseqüência no nível dos egressos. Nas aulas os professores detêm-se mais em explicar conhecimentos prévios, reduzindo o tempo utilizado para os atuais. O valor absoluto da nota de aprovação não precisa, necessariamente, variar. Basta que nas avaliações os critérios se tornem mais frouxos. O que era inaceitável no passado passa a ser normal. A estatura universitária se reduz. Progressivamente o mercado começa a ser invadido por profissionais cada vez menos preparados. Perdem estes e perde o país.
Mas voltemos à nossa história de “libertação” dos escravos. Lembrem-se das contra-medidas. Os atuais não-cotistas (e seus pais), não se manterão imóveis.
Adam Smith falava da “mão invisível do mercado”. Com todas as restrições de teóricos mais modernos, ela continua em ação. O mercado, e entenda-se aqui os pacientes, clientes, empresas privadas e serviços públicos, continuarão precisando de profissionais competentes. O mercado continuará selecionando os melhores. Em casos extremos, quando não houver disponibilidade nacional, ele os importará.
No futebol vê-se uma plêiade de jogadores saindo do país. Jogadores brasileiros naturalizam-se árabes ou japoneses em busca de melhores oportunidades. Na Olimpíada de Pequim o bronze no Vôlei de Praia foi disputado por duas duplas de jogadores brasileiros, uma delas naturalizada para poder jogar pela Georgia.
Mais discreta é a evasão de cérebros que o país tem sofrido. Por conta disto (entre outras) as instituições de fomento têm privilegiado as bolsas do tipo “sanduíche” em que o aluno é obrigado a fazer sua pós-graduação em duas instituições: uma estrangeira e a outra brasileira.
O mercado e seus agentes se adaptam continuamente. Salvo raras exceções, o ensino superior privado sempre foi inferior ao público. Hoje, aqui e acolá, começam a despontar instituições privadas de alto nível e mensalidades correspondentes.
No passado bastava ser formado. Hoje, cada vez mais exige-se pós-graduação. Públicos ou privados, o número de cursos aumenta. Em determinadas áreas, valoriza-se o que é feito no exterior. E não apenas isto, o profissional é solicitado a ter liderança, habilidade em técnicas de comunicação, ser versado em línguas, etc, etc, etc.
Se cai a qualidade do público, o privado ganha. Para lá se deslocam os “não-empurrados” pelo sistema de cotas, mas “empurrados” por outros sistemas. E assim se perpetua a separação entre os “pobres e incultos” e os “ricos e cultos”, mesmo que em níveis mais sutis e elevados. E assim, mais uma medida vendida como libertária e reparadora se mostra populista e protelatória.
Para estes profissionais mal-formados, não haverá boas colocações. Já dito, o mercado assim o exige. Talvez alguns lugares mal pagos e em condições de trabalho piores (se você pensou em algumas situações que já exitem hoje, provavelmente acertou). Criam-se (ou ampliam-se) trabalhos de primeira e segunda classe. Talvez no futuro venham a ser apelidados de trabalho para “cotista” ou “não-cotista”.
Ao contrário, se o ensino básico fosse o foco, os atuais cotistas, tidos como “pobres e incultos”, poderiam no momento do acesso ao ensino superior até continuar pobres, mas jamais seriam incultos. Desta forma, poderiam competir em pé de igualdade com os filhos das elites financeiras. Poderiam, pelo esforço próprio, superar os desafios inerentes e indispensáveis ao crescimento, em um sistema que é e deveria continuar a ser meritocrático em sua essência.
Desta forma então, ganhariam eles e ganharia o país.
Você tem algo a dizer ? Quer ampliar o debate ?
Comentários são bem vindos.
(*) Para uma discussão mais aprofundada destas medidas remeto o leitor ao livro “Sociedade Brasileira: Uma História – Através dos Movimentos Sociais. Da crise do escravismo ao apogeu do neoliberalismo.” de Aquino, Vieira, Agostinho & Roedel (Record, 2005)
Pois é Helena, neste caso infelizmente o que é aparentemente bom e bonito tem efeito oposto. O que é mais fácil, nem sempre é o melhor ou o certo.
Prof. Mauricio
Concordo com o Senador Wellinton Salgado(PMDB):
“Tem que se cuidar é do Ensino Básico. Aí sim, não vai se precisar de cotas, não vai precisar de nada, porque se tiver uma boa escola pública, esse aluno vai chegar a uma boa universidade pública”,