Quando a “ignorância” nos faz “mentir” – O caso do ENEM
Saíram os resultados do ENEM-Exame Nacional do Ensino Médio e os jornais noticiaram. E, claro, dão manchetes do que consideram importante. Por exemplo, o Globo de quatro e cinco de abril afirma: “Escolas do Rio lideram ranking do ENEM” e “ENEM: rede estadual tem 99 das cem piores notas”. No corpo das matérias outras afirmativas: “Resultado também decepciona para as escolas estrangeiras, consideradas refúgio de ensino de boa qualidade” e ainda “Outras escolas tradicionais da elite do Rio, como a Escola Parque, decepcionaram e não apareceram entre as melhores”.
Supõe-se que tais afirmativas sejam verdadeiras. Mais que isto, eu suponho que o redator da matéria acredite nelas. Bem, são todas afirmativas baseadas em números. O ENEM publica um “ranking” e o jornalista o interpreta e tenta apresentar sua interpretação em palavras. E é aí que mora o perigo.
Para “ler” números é preciso conhecer sua linguagem. Que 2 é “maior” do que 1 não há dúvida, mas isto quer dizer que é “melhor” ? Vamos por partes.
As primeiras afirmativas acima são globais, generalizantes. Faz sentido dizer que, se no conjunto de todas as escolas, as públicas ficaram entre as últimas, o ensino não deve ser dos melhores. Afinal, se dentre milhares de alunos os que mostraram pior desempenho foram os destas escolas, algo de errado deve haver. Porém, provavelmente, deve haver alguns alunos nestas escolas que são muito bons. Talvez alguns tenham tirado notas muito boas, mas como são poucos, suas notas pouco contribuem para a média de todos.
Por outro lado, as notas baixas são decorrentes de professores ruins ? Ou quem sabe, conseqüência de familias pobres, pouca cultura familiar, dificuldades diversas ?
De qualquer maneira e baseado nestes resultados, se você é pai ou mãe é razoável escolher uma escola privada em detrimento a uma pública. Afinal, em média, o desempenho destas foi pior. Ah ! Mas mesmo aqui há exceções. Consultando a tabela vemos algumas escolas públicas federais com notas médias bem elevadas. Se você está preocupado com o seu filho ou filha, a decisão não é mais global, e sim específica. Você diria, “sim as escolas públicas são ruins, mas esta em particular é excelente”. Ou seja, aqui os números começam a ter algum significado. É quando você os interpreta segundo suas necessidades específicas.
O que eu quero dizer é que não dá para fazer afirmativas específicas com dados globais. Dizer que um grupo de escolas é melhor do que outro, tudo bem. Isto porque as variações individuais se diluem nos grandes números e nas medidas de conjunto.
O problema começa a aparecer quando você quer fazer afirmativas individuais. Por exemplo: “Resultado também decepciona para as escolas estrangeiras”. Decepciona por quê ? A matéria explica: cita cinco escolas estrangeiras e aponta suas posições no ranking: 8, 10, 23, 37 e 60. Bem, são 444 escolas. Dentre estrangeiras temos duas entre as 10 primeiras, e todas na frente. Mesmo a última das estrangeiras, deixou 384 escolas para trás. Vamos às notas: 84,24; 83,33; 80,01; 77,48 e 74,9. Considere que a primeira colocada fez 91,18. São piores, mas estas são notas ruins ? Compare com a última do ranking, que fez 33,51.
Uma escola que ficou em terceiro lugar fez 88,75. Excelente, não ? Dá para pensar: “Vou colocar o meu flho nela, porque aí ele vai ficar nos primeiros lugares nos próximos concursos”. Mas então você lê na mesma matéria que esta escola levou para o ENEM apenas 12 alunos. Ué ? Cadê os outros ? Sabe-se que ela tem muito mais do que isto. Não há dúvida que estes doze são bons alunos. Mas quanto aos outros nada podemos afirmar.
Mas de qualquer maneira cabe questionar se este pequeno grupo é uma amostra realmente representativa do total de alunos desta escola. Se uma única vez você encontrasse um grupo de finlandeses mal educados, você se sentiria confortável em dizer que todos os finlandeses são mal educados ?
Seguindo o mesmo raciocínio, será que a Escola Parque realmente decepcionou ? Voltemos aos dados. Sua média foi 80,48. É uma nota ruim ? Lembre-se da pontuação da primeira colocada. A da Escola Parque foi aproxidamente 88% dela. Ficou na posição 19, o que significa que deixou para trás 425 escolas. Outra forma de dizer isto é que sua média se localizou entre as 5% maiores, deixando para trás 95% das médias. Para mim, este desempenho dificilmente poderia ser classificado como “decepcionante”.
Pois é, os resultados do ENEM apresentados no Globo são “apenas” uma tabela: colégios e suas notas organizados em ordem decrescente de média. Entretanto, para quem sabe “ler números” são muito mais do que isto. Já para quem não sabe, são uma fonte de confusão. Mais do que isto, são a base de afirmativas falsas. Por isto, quem não sabe matemática corre o risco de errar quando tenta entender o que diz uma tabela. Não me parece que tenha sido intencional, mas quando um jornalista ignora a “linguagem dos números”, afirma coisas que não se sustentam nos números que ele utiliza.
Pois é. Matemática faz bem à verdade…
Você tem algo a dizer ? Quer ampliar o debate ?
Comentários são bem vindos.
Parabéns pela sua análise. Encontrei seu blog numa pesquisa sobre colégios e o texto acima me levou a fazer reflexões importantes sobre a escolha do melhor ensino para meu filho. Um aspecto sobre o qual tenho refletido diz respeito do impacto do vestibulinho no resultado do ENEM. Escolas que empregam processos de admissão rigorosos tendem a eliminar os piores alunos, puxando para cima seus desempenhos no ENEM. Se os alunos daquelas escolas são os melhores, seu projeto pedagógico não pode ser superestimado, já que outros fatores entram em cena. Assim, a classificação da Escola Parque no Enem, por exemplo, tem um significado diferente daquela do São Bento, se considerarmos que a primeira, ao contrário da segunda, não faz vestibulinho, sendo mais democrática quanto à admissão de alunos novos. O Colégio Anchieta de Nova Friburgo, por sua vez, faz bonito ao conquistar 79 e 74 pontos, numa cidade do interior, e sem fazer seleção de novos alunos. Isso tudo sem falar no fato de que reprovações em larga escala ao final do ensino médio também alavancam, de forma artificial, o desempenho da escola.
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Resposta da Officina da Mente
Olá Nicole;
Fico feliz por ter contribuido para suas reflexões, e talvez beneficiado o seu filho por meio de uma escolha mais adequada que você fará. A chave aqui é particularizar e buscar significados específicos. Use os resultadosdo ENEM, é claro. Mas também visite a escola, converse com os coordenadores, verifique os currículos dos professores, observe as instalações, sinta o ambiente, os alunos, os funcionários, a direção. Entre na biblioteca e veja os livros lá existentes. Se possível converse com amiga(o)s sobre a escola. Talvez consiga falar com alguns pais, também alunos.
Converse, observe e pergunte muito. Depois pare e pense. Não valorize demais um único dado. Procure interpretar tudo EM FUNÇÃO das suas demandas e das características do seu filho.
Ah ! Muito importante – Lembre de fazer com que seu filho, nos seus limites e possibilidades, participe deste processo.
Um grande abraço,
Prof. Mauricio Peixoto
Suas observações sao interessantes, mas não retiram a validade das conclusões da reportagem quando se pensa que elas atingem principalmente as políticas públicas. É inevitável que o ENEM mostra, dentro de suas limitações, que o ensino público no Brasil é unm desastre, e que isso resulta em um hanicap negativo do país na luta mundial por competitividade e desenvolvimento social e econômico. Os números também mostram que, no bojo das escolas que se mantêm nas primeiras colocações, a escola campeão deste ano [São Bento, CSB], representante em quase todos os aspectos das escolas que se mantêm no topo ano após ano, vemos claramente o inquestionável sucesso de um modelo educacional que vai contra todo o status quo da educação, filosofia e práticas da educação pública, e até, porque não dizer, de muitas escolas privadas. O CSB exige média 7 em 10 para aprovação, provas finais abrangentes e exigentes, disciplina rígida e respeito no ambiente escolar, grande maioria de professores com mestrado e doutorado, ensino obrigatório de música e filosofia, e horário de 7:30 as 16:30 para os primeiros anos fundamentais. Os nossos “educadores públicos” deveriam se debruçar seriamente sobre isso. Os resultados mostram que educação não tem mágica e que, se não forem cobrados, os alunos “relaxam e gozam”, me perdoe pela expressão, mas ela foi usada por uma ministra de estado.
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Resposta da Officina da Mente
Pedro, concordo com você quando vc fala de resultados globais que podem orientar políticas públicas. Por exemplo a grande hegemonia do ensino privado sobre o público, fala sobre o desastre (nos seus termos) que tem sido a educação pública no Brasil. Por outro lado, explicar porque algumas escolas públicas superaram muitas privadas exige particularização. Ainda mais, se dirigirmos nosso olhar para as universidades o padrão se inverte. De novo, a dicotomia simplista público (ruim) X privado (bom), não se mantém.
Você mesmo cita o caso do Colégio São Bento, reconhecidamente uma escola de excelência no Brasil. Particulariza-o tomando-o como um modêlo a ser seguido por outras escolas. E é verdade. Tradição acadêmica, alto nível dos docentes, atividads extra-curriculares, disciplinas paralelas, e ainda infra-estrutura de qualidade são variáveis muito importantes para o sucesso da aprendizagem. É claro que tudo isto tem um custo, que o Colégio São Bento tem assumido. E os resultados aparecem.
E da mesma forma a Educação Pública tem um custo. Arcar com ele é uma política de governo que gera ¨bons resultados. Não fazê-lo tambem tem conseqüências. Por exemplo, as que no momento estamos discutindo…
Maurício, a sua bela exposição, acrescento mais uma questão: suponhamos que uma certa escola tenha tirado 40 no ano anterior ficando lá pela rabeira e, nesse ano, tenha feito 80 pontos, terminando entre os vinte ou trinta primeiros. É razoável dizer que essa escola foi mal?
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Resposta da Officina da Mente
Para mim a resposta é sim E não.
Sim no sentido estrito da classificação daquele ano específico. Mas isto não quer dizer que a escola É ruim. Ela FOI ruim. O problema aqui é o SIGNIFICADO que se atribui a isto. Muitas podem ser as causas desta variação. Por exemplo provas intencionalmente ruins. Em anos passados isto já aconteceu no “Provão” da Medicina com alunos da UFRJ e da USP, que fizeram um boicote político ao exame. Outra possibilidade; alunos competentes com baixo desempenho. Este tem sido o caso dos alunos de Enfermagem da Escola de Enfermagem Anna Nery que altamente valorizados pelo mercado não tem tirado as melhores notas em alguns concursos públicos (embora sejam apovados). Por que ? Fazem um curso de graduação que os estimula a pensar, são avaliados em dissertações diversas enquanto que tais concursos valorizam a memorização simples em questões de múltipla escolha.
NÃO e aqui falo do mais importante. Se a pergunta é se a escola ensina bem os seus alunos, então não dá nem para julgar por um único critério, nem para fazer afirmativas baseadas em um único ENEM. É preciso acompanhar os resultados ao longo dos anos. Se as colocações são consistentemente ruins, o prognóstico para o aprendizado do meu filho é ruim. O contrário também é verdadeiro.
Aqui estamos falando de números globais. Há turmas melhores e piores. Professores melhores e piores. Escolas passam por bons e maus momentos. Famílias e sociedades da mesma forma. Tudo isto se reflete em uma dada colocação do ENEM. Uma boa escola passa por isto tudo com resultados variantes porem positovos. O que importa em primeiro lugar é em torno de que valores médios oscila a escola. Importa ainda conhecer a curva das pontuações – ascendente, decrescente ou estável ?
Em resumo, a mim importa pouco se a escola fez 40, 80 ou 8000 pontos. Isto é só uma fotografia. Não me conta toda a história. E para escolher a escola do meu filho quero um filme, um romance, uma antologia de contos, entrevistas e narrativs de casos particulares. E depois disto acompanhar o dia a dia do meu filho na escola, ajudando-o nas dificuldades que naturalmente surgirão e parabenizando-o pelos seus sucessos.
Dá trabalho ? Com certeza. Mas compensa e muito…